REALIDADE MÁGICA
PARTE 1
O CONTADOR DE
HISTÓRIAS
Não posso revelar a identidade do protagonista desta
história porque ele jamais perdoaria tal indiscrição. Desse modo, para evitar constrangimentos,
usarei o nome Anastácio sempre que me referir a ele.
Tudo começou quando “Anastácio” estava sentado em um banco
de jardim de uma praça pública, buscando as palavras certas para compor sua
história. Naquela manhã, ele se sentiu embaraçado ao perceber que o homem de
idade bastante avançada, sentado ao seu lado, o observava insistentemente.
Cansado de ser o alvo daquele minucioso exame, ele parou de escrever e
perguntou ao tal sujeito:
– Posso ajudá-lo de alguma forma?
O homem respondeu enigmático:
– Talvez possamos nos ajudar mutuamente.
Anastácio afirmou sem rodeios:
– Duvido muito. Peço-lhe a gentileza de me deixar em paz
para que eu possa continuar o meu trabalho.
O homem permaneceu no mesmo lugar e continuou a encará-lo em
silêncio. Anastácio, sentindo-se queimar por dentro, levantou-se. Perguntava-se
como alguém poderia aparecer do nada e estragar completamente o seu dia.
Parecendo ler os seus pensamentos, o homem disse:
– Eu não tenho nada a ver com a sua irritação e não estraguei
o seu dia. É você quem estraga o seu dia todas as manhãs quando senta para
escrever neste lugar estéril. Venha comigo para que eu possa mostrar-lhe um
local mais adequado.
Anastácio sentou-se novamente antes de dizer:
– Não estou interessado. Por que não convida o otário
sentado no banco em frente, que também estava escrevendo e agora parou para nos
observar? Talvez ele tenha mais tempo e paciência para gastar com a sua
intromissão.
Adivinhe só quem era o “otário sentado no banco em frente”?
Acertou: era eu, Felizardo. Balançando a cabeça em sinal de desaprovação, o
homem respondeu:
– Não. Já cheguei a pensar nele, mas receio que ainda não
esteja pronto. Falta-lhe paixão, amor pelas histórias. Você, no entanto,
precisa delas e as busca porque as ama: o seu coração respira histórias. Venha
comigo. Você tem todo o tempo do mundo; mas, para mim, o tempo está acabando e
se torna mais valioso a cada minuto.
Anastácio esquadrinhou o rosto daquele desconhecido que não
media esforços para atraí-lo com sua fala mansa. Perguntou a si mesmo que mal
haveria em segui-lo se ele não parecia representar perigo algum. Após breve e
silenciosa reflexão, Anastácio aventurou-se a dizer:
– Está bem. Estou disposto a acompanhá-lo.
Exibindo um sorriso vitorioso, o homem disse:
– O carro está estacionado aqui perto; meu motorista nos
levará até lá.
Após duas horas de viagem, o carro estacionou em frente a um
terreno que pareceria abandonado se não fosse pela cerca, o portão, o banco e
um chalé bem-cuidados. Quanto à terra, parecia seca, dura, imprópria a
qualquer tipo de cultivo. Dando vazão à sua raiva e frustração, Anastácio
afirmou:
– Se me trouxe aqui para me empurrar esta terra improdutiva,
perdeu o seu tempo porque não costumo jogar fora o dinheiro que herdei do meu
pai. A resposta é não. Não comprarei esta propriedade sem valor no meio do
nada!
Aparentemente confuso pela inesperada reação, o homem disse:
– Não sou um vendedor e não estou tentando empurrar-lhe
coisa alguma. Só lhe peço que inspire o ar deste lugar com o coração. Sinta
como a atmosfera está repleta de histórias. Sente-se naquele banco. Feche os
olhos. Concentre-se e atraia uma delas. Deixe-a entrar em seu coração para que
ela possa lhe revelar o seu aroma e a sua delicada trama.
Anastácio já começava a odiar-se por ter se deixado enganar
quando, de repente, algo inesperado aconteceu: uma deliciosa brisa envolveu o
seu coração, e ele se sentiu preso num doce devaneio. Fragmentos de uma
história nova aglutinaram-se em sua mente, e o seu único desejo era: dar-lhe
vida. Sem hesitar, ele sentou no banco, abriu o caderno de anotações, apanhou a
caneta do bolso e começou a escrever.
Quando Anastácio terminou de reunir os pedaços da história,
leu-a prazerosamente e, só então, olhou ao redor e surpreendeu-se ao verificar
que já era noite, e não havia nem sinal do homem que o trouxera ali. Caminhou
até o chalé e teve outra surpresa: a dispensa estava cheia; e o asseio, a
disposição dos móveis e a quietude daquele lugar pareciam convidá-lo a
estabelecer-se ali por alguns dias.
Na manhã seguinte, uma nova e agradabilíssima surpresa
deixou-o de boca aberta e olhos arregalados: bem próximo ao banco, havia um
canteiro de terra fofa e, nessa terra macia e úmida que aparecera do nada,
despertara uma flor. Aproximando-se da flor, Anastácio pôde sentir sua
fragrância e ficou extasiado ao perceber que era o mesmo aroma da brisa que o
envolvera antes que ele começasse a escrever a história. Em seu coração, ele
guardava a certeza de que a sua história dera origem àquele canteiro e àquela
flor. Novas histórias viriam, e mais flores nasceriam naquele jardim.
Os dias se passaram velozmente, e as manhãs traziam as
flores, frutos da inspiração contida nas histórias. Anastácio jamais se sentiu
tão bem em toda a sua vida. Pensava estar sonhando e receava acordar. Cada flor
possuía uma fragrância semelhante ao aroma da brisa que o envolvia antes de
começar a escrever determinada história, e esta parecia ser a parte melhor:
cada flor representava uma história, cada flor era única, e ele as amava. Como
poderia deixá-las se desejava ardentemente que se multiplicassem? Lembrou-se do
homem e sentiu remorso por tê-lo tratado tão mal. Precisava desculpar-se e
decidiu ir ao cartório mais próximo para verificar a quem pertencia aquela propriedade.
Mais surpresas aguardavam-no quando ele chegou ao cartório
pedindo informações sobre o misterioso proprietário. Apanhando uma pasta com
vários documentos, o funcionário respondeu:
– A propriedade atualmente pertence ao “Sr. Anastácio”.
Você já deve ter imaginado que não foi esse o nome que o
funcionário do cartório mencionou. Na escritura da propriedade, estava escrito
o seu nome verdadeiro. O funcionário do cartório não pareceu surpreso ao
ouvi-lo dizer:
– Certamente houve um terrível engano. A propriedade não é
minha; mas, sem sombra de dúvida, eu gostaria de comprá-la. Como posso entrar
em contato com o proprietário?
Pacientemente, o funcionário do cartório explicou:
– Se o senhor é o Sr. Anastácio, basta apresentar-me um
documento que comprove sua identidade e assinar aqui, para que eu possa
entregar-lhe as chaves e a escritura. Não lhe será cobrada taxa alguma, porque
todas as despesas já foram pagas no ato da doação. Caso o senhor não seja o Sr.
Anastácio e esteja interessado em adquirir a propriedade, deverá entrar em
contato com o Sr. Anastácio, porque só ele poderá autorizar a venda.
Com as mãos trêmulas, enquanto mostrava seu documento ao
funcionário e preparava-se para assinar a escritura, Anastácio murmurou:
– Eu não compreendo como posso ser dono da propriedade se
nada paguei por ela.
Bem-humorado, o funcionário exclamou:
– É realmente impressionante! Já ouvi dizer, e os documentos
comprovam que o atual doador também não pagou nada por ela, e nem mesmo os dois
proprietários anteriores. Essa propriedade enorme é sempre doada por razões
desconhecidas.
Despretensiosamente, Anastácio comentou:
– Ela não é tão grande assim. Trata-se apenas de um terreno,
aparentemente sem valor, com um chalé. Para mim, no entanto, ela tem valor
inestimável.
Discordando respeitosamente, o funcionário balançou a cabeça
para os lados, antes de dizer:
– Talvez o senhor não tenha tido a oportunidade de conhecer
a propriedade como um todo. Além desse terreno que mencionou, existem outros
sem construção alguma. Mas a satisfação maior virá de três terrenos cujas casas
foram cercadas por agradáveis jardins. Se desejar, poderei acompanhá-lo até lá
para lhe mostrar toda a propriedade. De qualquer modo, juntamente com a
escritura, estou lhe entregando a planta atualizada e o molho de chaves.
Um pouco atordoado pela avalanche de surpresas, Anastácio
disse:
– Muito obrigado, mas creio que não será necessário. Eu só
gostaria de poder agradecer ao meu benfeitor. Não teria ele deixado algum
endereço ou telefone para contato?
O funcionário, solícito, apresentou um cartão e
desculpou-se:
– Perdoe-me o esquecimento. Ele deixou este cartão com um
número de telefone para que lhe fosse entregue.
Com o coração descompassado, Anastácio perguntou:
– Eu poderia usar o telefone?
O funcionário consentiu, e Anastácio segurou o fone e discou
o número com as mãos trêmulas. Percebeu logo que a pessoa do outro lado da
linha não conhecia o homem que lhe entregara aquele maravilhoso presente. Mas,
ainda assim, ficou curioso em descobrir qual era a relação entre os dois.
Certamente algum motivo haveria para aquele número de telefone ter chegado às
suas mãos. Precisava desvendar o mistério e, para isso, marcou um encontro com
o homem que, sem saber o que pensar, sem saber o que dizer, o ouvia
pacientemente.
Foi com imenso pesar que Anastácio, ao sair do cartório, em
vez de retornar ao seu refúgio, dirigiu-se à sua casa, que ficava próxima à
praça na qual ele marcara o encontro para a manhã seguinte.
Anastácio, ao acordar, sentiu falta da atmosfera que
envolvia aquele lugar mágico. Queria voltar o mais rápido possível, mas
primeiro teria que se desvencilhar daquele compromisso insípido. Deveria estar
curioso para saber quem o aguardava próximo ao chafariz da praça; entretanto, o
único sentimento que desabrochava em seu coração era a necessidade de respirar
e compor novas histórias. Depois desse encontro, mudar-se-ia definitivamente
para aquele lugar.
Por volta das 9h, Anastácio chegou à praça e sentou-se ao
meu lado no banco próximo ao chafariz. Ele olhava em minha direção com o
semblante carregado e só faltou pedir-me que deixasse o banco e fosse sentar em
qualquer outro lugar. Minutos depois, comentou:
– Eu espero alguém. E você, o que faz aqui sem o seu caderno
de anotações?
Uma pergunta direta merecia uma resposta igualmente direta:
– Também espero alguém.
Após consultar o relógio várias vezes, ele teceu novo
comentário:
– Uma namorada, eu suponho. É por esse motivo que evito as
mulheres. Odeio esperar, e elas parecem se divertir ao nos deixar esperando.
Foi a minha vez de dizer:
– Antes estivesse aqui aguardando a chegada de uma bela
jovem. Receio ter sido vítima de um trote. Um sujeito maluco ligou para a minha
casa ontem, perguntando se eu conhecia um senhor que o levou a uma propriedade
que ficava a duas horas daqui. Tirando isso, não falava coisa com coisa, e eu
não consegui entender mais nada.
A expressão inesperada em seu rosto deixou-me preocupado.
Perguntei-lhe:
– O que há? Não está se sentindo bem?
Ele sorriu antes de perguntar:
– Qual é o número do seu telefone?
Tudo começou a fazer sentido, e eu exclamei:
– Não me diga que foi você quem ligou e marcou este
encontro!…
Anastácio revelou:
– O homem que você afirma não conhecer pediu que me
entregassem o número de seu telefone quando eu fosse ao cartório. Ele
certamente esperava que nos encontrássemos por alguma razão. Ouça, engana-se ao
dizer que não o conhece. Você já o viu nesta praça há alguns dias enquanto
conversávamos. Você até mesmo parou de escrever para nos observar. Não se
lembra?
Eu olhava para ele em busca das palavras que usaria para não
ofendê-lo ao ter que desmenti-lo. Finalmente fui obrigado a dizer:
– Eu parei de escrever na última vez em que pude observá-lo
fazendo anotações, porque achei interessante o modo como você atuava para
caracterizar melhor o seu personagem. E posso afirmar que não havia ninguém ao
seu lado: era apenas você e a sua imaginação.
Com o olhar incandescente, ele exclamou:
– Está zombando de mim!
Desconcertado, perguntei:
– Por que eu faria isso? Ouça, eu moro aqui perto. Gostaria
de ir à minha casa para que pudéssemos conversar com mais privacidade?
Balançando a cabeça negativamente, ele disse:
– Não. Você irá à minha casa para que eu possa provar-lhe
que não estou louco. Venha, posso mostrar-lhe as chaves, a planta, a escritura…
Eu não imaginei tudo aquilo. Não posso ter imaginado!
Acompanhei Anastácio à sua casa e pude verificar que a
planta e a escritura eram autênticas. Ele estava satisfeito, e o seu entusiasmo
era tão grande que ele parecia uma criança narrando o que lhe acontecera nos
últimos dias.
Anastácio pediu à empregada que nos servisse um lanche e,
depois, conduziu-me à garagem, para que ele pudesse tirar o carro para
levar-nos à propriedade. Aquele era o início de uma grande e sincera amizade.
Quando chegamos ao terreno, o meu único desejo era contemplar as poucas flores
que ele afirmava terem desabrochado num canteiro recém-formado. E lá estavam
elas! Eram lindas, perfeitas! E cada uma possuía um perfume diferente, sedutor!
Deliciando-se com o meu entusiasmo, Anastácio disse:
– Você também poderá criar as suas próprias flores e
ajudar-me a embelezar o jardim. Basta abrir o seu coração para a atmosfera
deste lugar e inspirar uma história. Lembre-se: você precisa respirar com o
coração.
Eu estava feliz. Sentia-me leve e continuava a rir quando
algo muito estranho aconteceu: um calor agradável envolveu o meu coração, que
pareceu abrir-se como uma flor para acolhê-lo. Na minha mente, partes de uma
história, como se fossem peças de um enorme quebra-cabeça, começavam a se
juntar. Retirei do bolso um bloco de anotações e uma caneta, sentei no banco e
comecei a escrever. Foi um momento perfeito. O tempo passou com a rapidez do
vento e, quando dei por mim, já era noite.
Um aroma irresistível vinha do chalé e me convidava a
entrar. Quando apareci à porta, Anastácio disse:
– Entre e sirva-se. Você estava tão concentrado, que eu não
quis incomodá-lo e vim aproveitar o tempo de outra forma. Perdoe-me se a
refeição não estiver do seu agrado.
Lavando as mãos, comentei:
– Se a refeição estiver tão boa quanto o cheiro!… Não
imaginei que gostasse de cozinhar.
Sentando-se à mesa, Anastácio, procurando conter o seu
entusiasmo, disse:
– E não gosto, mas precisava ocupar-me de algum modo.
Conte-me como foi a sensação de respirar sua primeira história neste lugar.
Eu respondi sorrindo:
– Plena. Não existe outra forma de descrevê-la. Ouça, quando
chegamos, eu tomei a liberdade de contar as flores. Você acredita que amanhã
aparecerá mais uma?
Ele afirmou:
– Certamente. E você estará aqui para vê-la. Está muito
tarde para voltarmos. Amanhã, se você não tiver outro compromisso, eu gostaria
que caminhasse comigo pela propriedade. Precisamos visitar os outros jardins.
Você já se perguntou qual será a duração das flores?
Respondi:
– Para ser sincero, não. Mas posso arriscar um palpite.
Anastácio incentivou-me a continuar:
– Por favor, fale. Nada do que disser parecerá tolice. Somos
amigos, e amigos têm a liberdade de dizer o que pensam. A propósito, daqui a
uma semana haverá o Encontro Anual dos Contadores de Histórias. É uma boa
ocasião para nos reencontrarmos. Só lhe peço sigilo, porque não podemos
permitir que esta história venha à tona. Se algum dia você quiser contá-la,
deverá ser como algo fictício; e, por favor, nunca mencione o meu verdadeiro
nome. Se as pessoas acreditarem que é uma ficção, jamais procurarão o lugar.
Agora me responda qual é o tempo de vida das flores que estamos ajudando a
desabrochar.
Aventurei-me a dizer:
– Cada flor representa uma história. As histórias só morrem
quando são esquecidas. Dessa forma, o esquecimento é a única erva daninha capaz
de comprometer a saúde das flores. É o nosso dever contar as histórias para que
elas não sejam esquecidas e as flores permaneçam sempre viçosas.
Após alguns minutos de reflexão, Anastácio afirmou concordar
com a minha teoria. O seu semblante estava sereno, e ele parecia satisfeito.
Nada pode ser mais prazeroso a um contador de histórias do que se tornar o
protagonista de uma história fascinante. Eu também estava felicíssimo. Talvez
eu nem precisasse dizer que, na manhã seguinte, contemplei a minha flor com um
prazer descomunal. É como Anastácio costumava dizer: “Só mesmo estando lá para
saber como é agradável e revigorante respirar e cultivar histórias!”
FIM DA 1ª PARTE (O CONTADOR DE HISTÓRIAS)
DE "REALIDADE MÁGICA – LIVRO 1”.
Sisi Marques
21/08/2020
Não perca a 2ª Parte (O Mágico) de “REALIDADE MÁGICA – LIVRO
1”, na próxima 6ª feira, dia 28/08/2020.
Até breve!...
Sisi Marques